A criação como intimidade e aconchego - Por Sinivaldo S. Tavares*

23 de Agosto de 2016

 

Os textos do Segundo Testamento que narram as gestas do Espírito Santo em sua operação salvífica testemunham o caráter conflituoso de sua presença e ação. Ela é narrada pelo Quarto Evangelho, por exemplo, como uma trama processual jurídica que prolonga o processo instaurado contra Jesus pelas forças do “mundo”. Naquele processo injusto, Jesus foi condenado como réu. Mas o Pai intervém ao final do processo, tomando a defesa de Jesus, ressuscitando-o pela força de seu Espírito. De réu Jesus passa a ser juiz: juiz dos vivos e dos mortos, como atesta sobejamente os discursos de Pedro, segundo o livro dos Atos dos Apóstolos.

 

Não por acaso, o Espírito Santo é caracterizado como “Paráclito”, que quer dizer, “advogado de defesa”. Pois, de fato, sua missão precípua consiste em ir desmascarando lenta e eficazmente a farsa daquele processo injusto imputado contra Jesus que culminou na sua morte de cruz. E esta missão ele a conduz mediante um dúplice movimento que, no final das contas, se revela recíproco e complementar: ele vai lentamente revelando a singularidade da pessoa de Jesus e a peculiaridade de sua missão, de um lado, e, de outro, vai também desmascarando as reais intenções e interesses que culminaram na trama armada contra Jesus e sua pregação e que encarnam as forças do “mundo”.

 

O Espírito não age, porém, de maneira ostensiva nem se manifesta por meio de sinais extraordinários. Sua presença se dá no escondimento e, por isso, sua ação é interior. Ele penetra nos meandros mais sutis do cosmos e se insere nos veios mais profundos da história e vem habitar no âmago da pessoa humana, para, a partir desta singular interioridade, realizar sua lenta e processual obra de santificação.

 

O Espírito Santo se distingue por esta peculiar maneira de se fazer presente e de agir. Próprio do Espírito é ser ele mesmo no outro, no diverso de si próprio. Assim é no seio da Trindade Santa, onde Ele se revela enquanto pessoa distinta das demais, justamente porque presente no Pai e presente simultaneamente no Filho, Ele propicia no melhor dos modos a relação de paternidade e de filiação próprias de um e de outro.

 

Dessa forma, presente no Pai, ele faz com que o Pai o seja de verdade e, presente no Filho, faz com que ele assuma no melhor dos modos sua filiação. E esta peculiar presença do Espírito no Pai e no Filho poderia ser descrita como uma espécie de escondimento. Ele se esconde e, ao fazê-lo, cria as condições para que Pai e Filho, ambos, se realizem na mais perfeita reciprocidade, revelando cada qual sua mais lídima singularidade. Ele se esconde, na verdade, enquanto pessoa, para se fazer singularmente presente no amor recíproco entre Pai e Filho.

Da mesma forma, o Espírito também se esconde no interior de cada uma de suas criaturas e no complexo da história e do cosmos para potencializar no melhor dos modos as singularidades e alteridades que compõem as relações interpessoais, a trama da história e a complexa teia das criaturas todas. Mediante o seu Espírito, Deus se revela como a interioridade mais íntima de cada criatura e, portanto, da complexidade da criação.

 

Esse peculiar escondimento do Espírito talvez possa ser descrito mediante a metáfora do ventre ou do colo maternos. Esse escondimento não é índice de passividade, ao contrário, trata-se de uma retração fecunda: uma espécie de curvatura corporal da mãe que torna possível o aconchego propiciado pelo colo. O corpo encurvado da mãe em forma de colo e de proteção jamais será concebido pelo filho como uma ameaça ou como um espaço de angústia e de sufoco. Assim é o processo de escondimento do Espírito. Ele se retrai, tornando possível a fecundidade maior de sua presença e ação em termos de aconchego e ternura, proteção e cuidado. Por isso, quando falamos em kénosis do Espírito não estamos apenas nos referindo a seu escondimento no tocante à sua ação, mas estamos acenando para uma dimensão que o qualifica enquanto pessoa distinta do Pai e do Filho, como uma atitude que o caracteriza enquanto pessoa em seu modo mais genuíno e peculiar de ser.

 

Em definitiva, encontramo-nos diante de um processo de autêntico escondimento do Espírito Santo. Escondimento que provoca o aparecimento das distintas singularidades. Escondimento que salienta as intrínsecas relações de reciprocidade entre as distintas singularidades, propiciando a emergência das alteridades. Escondimento que, enfim, cria as condições para a realização daquele desígnio primordial divino: celebrar com suas criaturas uma experiência de encontro e de comunhão.

 

 

Sinivaldo S. Tavares - *Possui doutorado em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum (1998). Durante treze anos foi professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano de Petrópolis RJ. Foi ainda coordenador do Curso de pós-Graduação lato sensu "Espiritualidade, Ecologia e Educação: uma abordagem transdisciplinar"; coordenador do Master em Evangelização "Cenários Contemporâneos: interpelações e perspectivas". Atualmente é professor de Teologia Sistemática na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) e no Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA), ambos situados em Belo Horizonte, MG. Membro do Conselho Editorial das seguintes revistas especializadas: Perspectiva Teológica (Belo Horizonte) - Rhema (Juiz de Fora) (1516-3954), - Atualidade teológica (1676-3742) e - Repensar - Revista de Filosofia e Teologia

 

Fonte: http://www.domtotal.com

 

 

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