O mundo carente de Deus

Se nossa carência de relação com os outros não pudesse ser satisfeita, não seríamos humanizados e não seríamos o que somos, seres com os outros no mundo.

13 de Janeiro de 2017

 

Frei Betto parafraseia Guimarães Rosa afirmando, “se Deus quiser entrar na minha vida, ele que venha amado, pois ando muito carente de dengos divinos”. Sabemos que carecer é ter falta de alguma coisa ou alguém. Antropologicamente, o ser humano é carente do outro. Somos carentes do outro, pois não nascemos sozinhos e nossa existência é mediada pelos que nos transmitem e compartilham o mundo conosco. Somos herdeiros de uma herança humana, ao mesmo tempo em que a transmitimos aos que vierem depois de nós. Podemos dizer que carecemos da relação com os outros para nos tornarmos humanos, para sermos pessoas com potenciais para ir além. Não é possível uma vida humana indiferente à alteridade. É diante do diferente de mim que eu me constituo humanamente e posso viver. Somos humanos à medida que nos fazemos em relações interpessoais. O contrário disso nos condenaria à desumanização. Se nossa carência de relação com os outros não pudesse ser satisfeita, não seríamos humanizados e não seríamos o que somos, seres com os outros no mundo.

 

Na esteira da religiosidade, há em nós uma abertura para o transcendente, para o totalmente outro. Essa abertura, que tem a ver com o sentido da existência, nos coloca numa procura por Deus, a fim de que a vida possa ser compreendida desde um prisma religioso. No entanto, a busca por Deus não deve se dar na esteira da necessidade, que condicionaria Deus, mas na esteira do desejo. O desejo é a abertura à procura pelo amado e pela amada. No Salmo 42, o salmista afirma que tem sede de Deus e que O deseja: “[...] a minha alma anseia por ti, ó Deus. A minha alma tem sede de Deus, do Deus vivo”, da mesma maneira que um cabrito sedento esperando pela água do riacho. O salmista nos recorda que Deus é desejado pelo ser humano, que ele é desejado pela existência. A experiência de Deus é vital para o ser humano, tal como a água para o animal sedento. A existência humana, tantas vezes incompreensível, deseja Deus, a fim de que a sede de sentido seja amenizada, quiçá superada.

 

Nessa esteira, podemos afirmar que o mundo anda carente de Deus. Mas carente no sentido de que Deus deixou de ser desejado, que ele deixou de ser ansiado pelos crentes. O mundo carece da carência de Deus, porque ele foi colocado na ordem das necessidades. Não raro, ouvimos as pessoas dizerem que esperam que Deus as satisfaça em suas necessidades. Delegamos a ele a tarefa de resolver nossos problemas e questões, o tornamos um funcionário sagrado que deve estar à disposição quando precisarmos. A “gratuidade” da graça foi delegada aos cuidados financeiros e monetários dos homens e mulheres das religiões. Os crentes deixaram de desejar Deus e agora o contratam em seus esquemas mundanos. Por isso, podemos afirmar que o mundo carece de querer-desejar Deus.

 

Os crentes se esqueceram de Deus, aliás, as posturas das pessoas que se afirmam fiéis, também suas palavras e ações, apontam para algo ainda pior: os crentes se esqueceram que se esqueceram de Deus. E isso é percebido quando as referências ao Deus de Jesus são subtraídas por um sentimento e por práticas de exclusão, de indiferença e do fechamento ao outro. Quem se fecha ao irmão e a irmã que vê, se fechará a Deus que ninguém vê. João, em sua primeira carta, parece ter compreendido e ensinado a sua comunidade que a fé em Deus está irreversivelmente e intimamente unidade às relações que construímos com os outros. Desse modo, ninguém pode afirmar uma fé no Deus de Jesus se está fechado às alteridades que nos humanizam. Uma sociedade que tende aniquilar o outro, semelhante e diferente, é uma sociedade que tende a desumanizar-se. E nesse processo de desumanização, Deus, o totalmente Outro, torna-se não mais que o mero funcionário sagrado, não desejado como fonte de sentido para a vida.

 

A crise antropológica que vivemos é, sem dúvidas, impulsionadora de uma crise teológica, e vice-versa. Obviamente, se não há lugar para o outro na teia das relações cotidianas, relações estas que humanizam, também não há lugar para o totalmente outro que é Deus. Nesse sentido, a horizontalidade da fé mostra que na medida em que nos fechamos aos irmãos e as irmãs (os amigos e os inimigos), fechamo-nos na mesma proporção a Deus. Nossas sociedades que justificam o extermínio das pessoas, o fechamento das fronteiras, o ódio aos grupos minoritários, é a mesma sociedade que vende e compra a graça de Deus com o cartão de crédito e se rende às mirabolâncias de uma religiosidade da camisa que cura por meio de mágica.

 

A crise antropo-teológica precisa ser superada antes que a humanidade conclua seu percurso de desumanização, esquecendo-se definitivamente do Deus de Jesus e do outro que é o próximo. Para os cristãos e as cristãs, vale insistir nos textos sagrados da fé, que rememoram a práxis de Jesus de proximidade ao semelhante, ele que sempre esteve irremediavelmente convertido a Deus e aos outros com os quais se encontrou pelos caminhos. São as palavras e ações de Jesus que nos ajudarão a nos convertermos aos outros e a desejar Deus, nós, que na secura da vida, andamos carentes de humanização e de dengos divinos.

 

*Tânia da Silva Mayer é Mestra e Bacharela em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje); Cursa Letras na UFMG. É editora de textos da Comissão Arquidiocesana de Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Escreve às sextas-feiras.

 

 

Fonte: http://www.domtotal.com

 

 

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