O ser humano: um novelo de relações

O rosto é a expressão mais acabada do nosso estar voltado inteiramente para os outros.

17 de Janeiro de 2017

 

Existem dimensões que são, na verdade, constitutivas de cada pessoa e de todos os seres humanos. A relacionalidade é uma delas. E isto a despeito de uma compreensão difusa segundo a qual nossos relacionamentos seriam uma espécie de adendo ou acréscimo à nossa individualidade. Imaginamo-nos, muitas vezes, como um conjunto de individualidades, umas ao lado de outras. Existiríamos, na prática, como indivíduos separados uns dos outros e, como tais, buscaríamos no relacionamento uma solução para debelar os efeitos negativos de tal separação. Neste caso, tal como uma ponte, a relação teria a função de impedir a total dispersão e desagregação das várias individualidades.

 

Estudos mais atentos no âmbito da antropologia, todavia, tem salientado que a relacionalidade constitui uma das dimensões constitutivas da existência humana. De tal sorte que não se pode pensar a existência de cada pessoa fora do contexto de uma relacionalidade prévia. Existimos, na verdade, no horizonte de uma relacionalidade que nos precede, não apenas cronologicamente. Somos cada vez mais conscientes de que a vida nos alcança na mediação de distintas mediações humanas e sociais.

 

Definimo-nos, biograficamente, a partir de determinadas relações que revelam quanto seja circunstanciada nossa existência. Os simples dados autobiográficos, que caracterizam a existência ordinária de cada um e de todos nós, nos permitem inferir o caráter intrinsecamente inter-relacional da nossa existência. Nascemos no ano tal, numa determinada localidade X, numa família Y, etc... e, em função disso, assumimos determinados condicionamentos que vão marcar indelevelmente nossa inteira trajetória histórica. Condicionamentos estes que não devem ser entendidos unicamente no sentido restritivo, como algo que limita, aprisiona e, portanto, impede-nos de alçar vôo livre. Condicionamentos devem ser também entendidos como a condição da possibilidade da vida enquanto tal, escandida nas específicas e condicionadas decisões e atitudes que alguém eventualmente possa tomar e assumir no curso da própria vida.

 

É necessário, destarte, articular bem ambos os significados, para que apareça explicitamente a implicação recíproca presente no termo condicionamento. Desta forma, é na exata proporção em que nossa vida se dá como circunstanciada que ela pode eventualmente possibilitar o desabrochar de suas próprias e intrínsecas virtualidades. Na hipótese de que nossa vida se desse na ausência absoluta de todo e qualquer condicionamento, ela também não seria capaz de desenvolver algum tipo de virtualidade. O que dá, em outros termos, consistência à própria vida, fazendo com que ela dê seus saltos em termos de vitalidade é propriamente o fato de ela ser, para todos os efeitos, circunstanciada. São as circunstâncias, no final das contas, a dar firmeza e consistência a toda e qualquer iniciativa livre e criativa. Posto que, circunstanciada, é que nossa vida pode revelar-se altamente criativa. Pois, afinal, toda expressão de criatividade nada mais é do que o desfrutar no melhor dos modos de todas as virtualidades de uma determinada e específica realidade que nos é dada de antemão, sem a possibilidade de uma prévia escolha.

 

É no entrecruzamento, nem sempre fácil de precisar-se, entre destinação decisão, que se desenrola toda a trama do teatro humano, seja este uma epopéia ou um drama. Destinação remete-nos à dimensão do já dado, do prévio, do anterior, do experimentar-se como alguém de antemão lançado no burburinho da existência. Decisão, ao contrário, corresponde à dimensão da possibilidade do discernimento, do acolher ou não, em liberdade, tudo o que porventura nos tenha sido dado de antemão. Concebidas assim, destinação e decisão são dimensões recíprocas e auto-implicantes. Uma não se dá sem a outra, pois ambas se reclamam reciprocamente. Aquilo que, portanto, chamamos de identidade pessoal resulta como fruto de um entrelaçar-se jocoso de destinação e decisão, de condicionamentos e iniciativas, de resgate e novidade, de fidelidade e criatividade. Trata-se, na realidade, de um contínuo processo em movimento, expressão da dinamicidade do humano.    

 

A fenomenologia da nossa existência comunitária e social também revela a dimensão intrinsecamente inter-pessoal e relacional da nossa existência. Em última análise, não apenas vivemos, nós convivemos. Viver é, em primeiro lugar, desfrutar da companhia dos outros e das outras, mas é ainda conviver harmoniosamente com todas as demais criaturas. Num nível mais próximo, porque mais imediato, experimentamos que viver é, fundamentalmente, ser acolhido e reconhecido, cada vez, por aqueles que convivem conosco, ou ainda por aqueles que, de uma forma ou de outra, estão ao nosso redor. Imaginemos, apenas por um instante, o que seria a vida de alguém que, hipoteticamente, não se sentisse reconhecido ou aceito por uma pessoa sequer. Não seria vida digna de ser vivida. Pois a vida se apresenta como um jogo no qual se dão trocas gratuitas.

 

Viver assim é participar de maneira interativa deste jogo do dar e receber. Vivemos na medida em que reconhecemos o outro na sua singularidade e, ao mesmo tempo, sentimo-nos reconhecidos e aceitos pelos outros sem ter que negar nossa identidade. Toda autêntica relação humana parte necessariamente deste pressuposto. De tal sorte, torna-se praticamente impossível qualquer tipo de vida sem o mínimo de cumplicidade. Conviver resulta assim como o fruto de uma rede de cumplicidades que almejam alcançar uma convivência respeitosa e harmoniosa. Há duas imagens que exprimem esta inter-dependência prévia e, de resto, imprescindível, porque inerente, a toda existência humana: a do rosto e a do nome.

 

O rosto de uma pessoa é o que melhor exprime sua identidade mais própria. Há quem diga, inclusive, que o rosto é o espelho da alma, no sentido de que tudo aquilo que povoa nosso universo mais íntimo transparece, de alguma forma, em nosso rosto. Todavia, o rosto é a expressão mais acabada do nosso estar voltado inteiramente para os outros, como dimensão intrínseca da nossa identidade mais genuína. Não existe possibilidade de contemplarmos diretamente nosso próprio rosto. Só conseguimos fazê-lo através da sua pálida imagem refletida no espelho ou ainda em alguma superfície cristalina. Por esta razão, a fenomenologia do rosto revela que o que somos não nos é dado diretamente e de forma acabada, estável, como algo que se encontra diante de nossos próprios olhos, numa total disponibilidade. O que constitui nosso eu mais íntimo nos é dado, ao contrário, no bojo daquela relação primeira, anterior, no interior da qual nós, de antemão, nos encontramos. Neste sentido, dizer vida significa ao mesmo tempo remeter para as dimensões da proveniência, origem, relação e destinação.

 

O mesmo acontece com o nome através do qual nos identificamos e, conseqüentemente, nos distinguimos uns dos outros. O nome serve, fundamentalmente, para a nossa identificação enquanto pessoa singular, diferente das demais. No entanto, ele é usado mais pelas outras pessoas do que propriamente por nós mesmos. É a maneira através da qual as outras pessoas se referem a nós e, com isto, remetem para o que de mais pessoal e próprio existe em cada um. Todavia, o simples fato de uma pessoa referir-se a si mesma de maneira exagerada, usando repetidamente o próprio nome, revelaria traços de uma personalidade doentia, expressão do humano decadente.

 

Com base no que foi dito acima, não se concebe a busca da própria identidade mediante um processo que exclua de antemão a pessoa humana desta natural e prévia rede de inter-relações. Aqueles elementos ou dimensões que constituem nossa identidade mais própria e, neste sentido, caracterizam cada qual como pessoa diferente das outras, nos é dado no contexto e através da relação com os demais. Por essa razão, aquela realidade que nomeamos como identidade nada mais é do que nossa diferença específica. E por ser específica, esta diferença constitui o resultado de um confronto sadio de cada pessoa com as demais. Este confronto pressupõe a saída de si na direção dos outros, numa atitude de abertura incondicional.

 

Por tudo isso, é que todo processo de introspecção direcionado ao conhecimento maior da própria identidade pressupõe necessariamente esta abertura prévia e intrínseca de cada pessoa às demais. Abertura ao outro e introspecção, portanto, nada mais são do que dois movimentos de um mesmo processo e, por esta razão, devem ser dialetizados. Privilegiar de modo exacerbado um em detrimento do outro, ou vice-e-versa, resultará num desequilíbrio incontornável. Importa manter a tensão fecunda entre ambos os pólos, a fim de que, de um lado, a abertura e convivência com os diferentes possam estimular o encontro com as próprias diferenças, e, de outro, o resgate da própria identidade possa fomentar ainda mais a convivência com os demais, no respeito pelas suas respectivas e irredutíveis diferenças.

 

No âmbito social existem regras semelhantes. Existe, na verdade, uma gama enorme de redes sociais em meio às quais nos encontramos imersos. Interagimos continuamente com inúmeras relações sociais. Somos, de certa forma, fruto das interações sociais. Mas, todavia, interagimos de maneira ativa sobre estas mesmas relações através de nossas decisões e atitudes que, consciente ou inconscientemente, acabam repercutindo de uma forma ou de outra no tecido social.

*Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM. Frade franciscano. Doutor em Teologia Sistemática. Atualmente é professor desta mesma disciplina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) e no Instituto São Tomás de Aquino (ISTA), ambos situados em Belo Horizonte, MG.

 

 

Fonte: http://www.domtotal.com

 

 

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