Aprendendo com as perdas

O momento é de lutar para assumir a condição de sobrevivente, coisa que sozinho dificilmente alcançará.

20 de Junho de 2017

 

Em nossa sociedade essencialmente capitalista e desvairadamente consumista, muito bem definida pelo sociólogo Bauman como “Modernidade Líquida” pela rápida fluidez com que as coisas acontecem, ocorrem muitas perdas, e a elas acompanham o sofrimento e o luto.

Dentre as causas mais frequentes, cito os veículos de transporte cada vez mais rápidos (mesmo com o limite legal sendo em torno de 110km/h, carros são fabricados com potência suficiente para impulsioná-los a mais de 200km/h), provocando acidentes cada vez mais catastróficos, ceifando vidas de crianças e adultos. Cito as numerosas e tentadoras ofertas de bens de consumo, cada vez mais sofisticados, mas também cada vez mais frágeis e voláteis; cito a alta rotatividade dos empregos, criando uma multidão de desempregados; cito as redes sociais e os meios de comunicação portáteis, onde amizades se formam com a mesma velocidade com que são desfeitas por um simples toque no botão “delete”; cito as uniões afetivas, antigamente sólidas pelo compromisso matrimonial, hoje fragilizadas pelas novas e variegadas formas, quase sempre já definidas, “ab initio” como ligações não definitivas.

Delas, citadas somente como exemplos, pois existem muitíssimas outras, resultam as perdas pelas mortes acidentais ou pelas mutilações incapacitantes; resultam as decepções pela perda, seja por roubo, por processos jurídicos, ou pelas falências; resulta a perda da saúde, levada por doenças malignas; resultam as perdas de amigos, afinal nem tão amigos assim; resultam as perdas pelas separações oficiais ou oficiosas. Ou seja, quanto mais se acumulam bens, mais se tem o que perder, e mais perdas ocorrem ao longo do tempo, cada uma mais dolorosa que a outra. E a cada perda, dependendo do grau de apego que se tem à pessoa, cargo ou objeto perdido, maior será o sofrimento, mais doloroso será o processo do luto que sobrevém a todas elas. Por isso mesmo, afirmam os observadores e estudiosos do comportamento humano, vivemos numa sociedade doente, infeliz, repleta de trapos humanos travestidos de gente bonita, elegante, festiva em sua casca, mas mergulhada nos vícios, no álcool, nos psicotrópicos, nas drogas alucinógenas, e quase sempre dependentes de psicólogos e psicanalistas para, com frequência mascarar as suas dores e suas frustrações.
 
Tanto na cirurgia plástica, que exerci por mais de 30 anos, e especialmente na biotanatologia que paralelamente exerci acolhendo pessoas enlutadas, quase sempre pela morte de um ente querido, lidei com perdas, as mais diversas. E com essas atividades aprendi a lidar com o luto, expressão psicofísica das perdas acontecidas, e capaz de ser trabalhado para alcançar a sua assimilação, e quase sempre a sua superação, desde que adequadamente elaborado. Fruto desse trabalho, publiquei os livros “Sobre o Viver e o Morrer” e “Dizendo Adeus”.

Nessa atividade aprendi que o processo do luto, numa evolução bem conduzida, dura em média dois anos. Basicamente refiro-me ao luto pela morte de uma pessoa querida, contudo todos os demais seguem caminhos semelhantes, com pequenas variações que, se bem elaboradas, permite a sua superação. Didaticamente pode-se dizer que o primeiro ano é bem mais intenso e doloroso, passando por quatro estágios. O primeiro, durando de 15 a 30 dias, é quando a endorfina liberada protetoramente pelo organismo deixa a pessoa um tanto adormecida, como se não entendesse o que ocorreu.

 

O segundo, ocupa os dois ou três meses seguintes, quando os amigos que lhe deram apoio nos primeiros dias voltam, necessariamente, às suas atividades normais – pois a vida continua – e o enlutado passa a encarar, sozinho consigo mesmo, a perda acontecida. É certamente o período mais sofrido, pois o vazio com que irá se deparar é por demais doloroso, levando alguns a cometerem o erro de tentar preenche-lo logo, e de qualquer forma. Agravando o quadro, surgem sentimentos de culpa, com a terrível pergunta: “o que foi que fiz para que isso acontecesse?” E ainda: “e se eu tivesse agido diferentemente?” E outra ainda pior: “por que isso aconteceu logo comigo? E logo agora?” Para enfrentar tais dilemas, é essencial encontrar uma pessoa, um profissional ou um conselheiro capaz de lidar com essas situações, para que o enlutado não se deixe dominar pelo papel de culpado, tampouco pelos sentimentos de autocomiseração. O momento é de lutar para assumir a condição de sobrevivente, coisa que sozinho dificilmente alcançará.

 

Uma boa orientação é: “faça tudo aquilo que o seu coração mandar, desde que não seja nada imoral, ilegal ou danoso para si próprio ou para os outros”. Tampouco deve ser precipitado, querendo queimar etapas, tomando atitudes sem amadurece-las e certificar-se de que são realmente apropriadas. É bom lembrar-se de que “não se deve apressar o rio, pois ele corre sozinho.” E ter muito cuidado com os maus conselheiros, os moralistas de plantão, os que cobram atitudes, mas pouco ou nada fazem para realmente ajudar o enlutado.

Passando essa fase, o enlutado começa a vislumbrar uma luz no fim do túnel e os próximos meses terão altos e baixos, momentos bons e recaídas. Mas tudo faz parte do processo. A persistência e a paciência são soberanas. Buscar apoio na espiritualidade é um dos caminhos mais sábios, desde que não se deixe levar por fanatismos e proselitistas. A prática da meditação, bem orientada, é a melhor substituta para os tranquilizantes. E entrando no segundo ano, cada um no seu próprio tempo irá descobrindo a importância e a alegria do viver, ocorrendo naturalmente a aceitação do que aconteceu. E o mais significativo: verificará que as perdas seguidas de um luto bem elaborado, tornam-se na melhor escola de vida, e de vida com qualidade. Aprenderá então a lição mais importante: não existem ganhos sem perdas, tampouco perdas sem ganhos.

 

* Evaldo D´Assumpção é médico e escritor

 

 

Fonte: http://www.domtotal.com

 

 

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