Por Sinivaldo S. Tavares*
06 de Setembro de 2016
No universo semântico cristão, o corpo, a experiência e a matéria assumem uma posição singular. A história do ocidente cristão, todavia, tem manifestado um visível desrespeito pelo corpo e pela materialidade do cosmos, e isso tem justificado, entre outras coisas, o domínio desenfreado do ser humano sobre as demais criaturas. Esse processo tem se dado mediante um descaso por tudo o que é material, histórico e transitório enquanto realidades em si mesmas e como caminho para Deus: no primeiro caso, o corpo é anatematizado tornando-se um misto de descaso e de desprezo; no segundo, o corpo é considerado lugar de sensualidade, concupiscência e pecado.
É sabido que, a partir do momento em que a pregação cristã principia seu diálogo com a cultura helênica, a tentação de separar dimensões constitutivas de uma mesma realidade, vai tomando corpo até, de fato, se consolidar em uma situação em que os pólos, antes recíprocos e complementares, agora se convertem em opostos, justapostos e contrapostos. Foi o que aconteceu, por exemplo, no que concerne à relação entre alma e corpo. Segundo a antropologia judaica, corpo e alma eram considerados dimensões recíprocas e complementares e, portanto, constitutivas do ser humano em sua integridade. Os gregos, ao contrário, entendiam alma e corpo como dois entes separados um do outro, duas coisas opostas e, ao fim e ao cabo, contrapostas.
Todavia, esse dualismo sofreu um processo de radicalização nos primórdios da Modernidade por obra do conhecido filósofo René Descartes. Urgido a descobrir verdades que fossem capazes de suportar a prova da dúvida metódica, ele estabelece uma nítida separação entre alma e corpo, para, depois, definir o ser humano em termos de espírito. A posição cartesiana é a de que a natureza humana se esgota essencialmente no plano da não extensão ou da imaterialidade, perfazendo-se unicamente no âmbito do pensamento. Portanto, o corpo não entra na constituição daquilo que é considerado essencial ao humano. A identidade do “eu” reside na alma; o “eu” é a alma. Neste sentido, aquela dicotomia que sempre emergia sorrateiramente no seio do pensamento ocidental, como expressão patológica da dualidade própria da condição humana, recebe em Descartes uma confirmação teórica.
Ademais, esta posição serviu como luva aos interesses da sociedade emergente preocupada em explorar a natureza transformando-a num conjunto de mercadorias disponíveis aos negócios da incipiente classe dos comerciantes. Ela oferecia, no fundo, uma excelente fundamentação teórica para a proposta de F. Bacon e de G. Galilei: interpretar a natureza mediante linguagem e códigos matemáticos, para poder dominá-la eficazmente. E, de fato, o paradigma cartesiano foi acolhido como um verdadeiro suporte teórico para as tendências empiristas que acabariam constituindo a ciência clássica de cunho mecanicista.
E o curioso é que Descartes acabou sancionando a separação entre o sujeito pensante e o objeto extenso; separação esta que, com o passar do tempo, acabou ocasionando nefastas conseqüências. Se, por um lado, ele satisfez às exigências da fé cristã de seu tempo, defendendo logicamente a imortalidade da alma, por outro, ele deixou à ciência campo livre para suas explorações empiristas e explicativas direcionadas ao corpo, à matéria e ao cosmos inteiro. Para nós que vivemos na outra extremidade deste processo histórico, não é preciso insistir sobre os pesados efeitos que a concepção cartesiana acabou exercendo sobre o ulterior desenrolar da Modernidade concebida como uma cultura condicionada pela ciência e pela técnica e, mais recentemente, pela tecnociência.
Ousaríamos dizer que o paradigma responsável pela atual degradação da vida no Planeta é também o mesmo que justificou historicamente a dominação do varão sobre a mulher, do homem branco europeu sobre os índios e negros, e que ainda continua justificando a opressão do corpo dos pobres e das vítimas. Trata-se do paradigma antropocêntrico ocidental: o mesmo que sancionou a separação do sujeito pensante e da realidade concebida como mera coisa extensa. Nosso corpo e a matéria em geral foram assim reduzidos a meros objetos e o ser humano, a um sujeito que apenas pensa, vale dizer, à sua consciência. O sujeito passa a ser concebido apenas como aquilo que ele pensa ser. Trata-se de uma consciência imediata de si mesmo, sem dobras, totalmente transparente. A alma é concebida como um ser inteiramente presente a si mesmo, sem distância, nem mediação. E o corpo como uma soma de partes sem interior. Trata-se, no final das contas, de um processo artificial que não exprime a experiência humana concreta em sua complexidade, vale dizer, com suas inerentes ambigüidades.
A Modernidade, portanto, se revela como um movimento que, a partir da centralidade do cogito cartesiano, vai desintegrando e pulverizando a índole mistérica do mundo, para que o ser humano possa concretizar cada vez mais seu intento de se tornar, para todos os efeitos, “le maître et le possesseur de la nature” (Descartes). Atesta-se, nesse sentido, uma correlação entre “vontade de poder” do sujeito moderno e o “desencantamento do mundo” considerado apenas como objeto. As coisas passam a ser vistas pelo ser humano apenas na sua utilidade: elas adquirem sentido não em si mesmas ou enquanto referidas a um Mistério insondável, mas enquanto destinadas ao uso e ao bem-estar do ser humano. Preso, portanto, ao próprio interesse e à própria imagem, o ser humano ocidental descuida dos outros humanos e das criaturas, limitando-se a manter relações meramente funcionais e utilitárias.
A partir da afirmação do cogito cartesiano, a consistência ontológica do ser humano se define em termos de certeza e verdade do próprio ser. Parte-se, portanto, do pensamento do qual não se pode furtar senão através do pensamento e permanecendo no âmbito restrito do próprio pensamento. Reduz-se, assim, o ser humano a uma de suas dimensões, a do “eu penso” (res cogitans), dando origem a um pensamento que tem a pretensão de absorver o sujeito no universo lógico. Ocogito se sente sempre mais o raio de seu poder, sujeitando e subordinando tudo o que encontra diante de si. Nessa perspectiva, o ser humano se auto-afirma em luta contra os outros, considerados estranhos e, portanto, objetos a serem submetidos ou eliminados. O diferente e o plural ou são subjugados e eliminados ou reduzidos à monotonia opressora do idêntico.
Interessante notar que mesmo hoje, vivendo em uma cultura que aparenta valorizar o corpo, testemunhamos um retorno da afirmação da imaterialidade como identidade própria dos sujeitos. No contexto, por exemplo, das pesquisas envolvendo a engenharia genética e a biotecnologia, percebe-se o acento posto sobre a informação genética como característica essencial e peculiar dos seres. Chega-se a postular, nestes casos, o caráter obsoleto e supérfluo do corpo orgânico em relação à sua informação, esta sim, imprescindível. Para se referir a esse expediente fala-se em neocartesianismo high-tech.
Na contramão desta posição hegemônica, propõe-se a dimensão simbólica como diferencial da pessoa humana. Concebendo o ser humano como “animal simbólico”, sustenta-se que a dimensão simbólica – a racionalidade, a linguagem, a expressão artística e a experiência religiosa – ocupa um lugar determinante na nossa história evolutiva. Assim sendo, com o surgimento do ser humano, os símbolos se tornam os protagonistas principais da evolução. Insere-se, portanto, o tema da liberdade criativa no bojo da explicação científica, ao se sustentar que o aparecimento do novo não é apenas conseqüência de incidentes na duplicação do DNA, mas, talvez, o fruto de fenômenos de aprendizado e de criatividade.
Uma das mais nefastas conseqüências desta separação entre alma e corpo é a pecha que foi colada sobre o corpo como lugar da sensualidade, da concupiscência e do pecado. Ao longo da multissecular tradição cristã, o corpo foi quase sempre anatematizado e, em certas circunstâncias, considerado até instrumento do diabo. E o que é ainda pior: não estamos nos referindo, infelizmente, a meros resquícios de um passado enfim superado; essa mentalidade não apenas perdura até os dias de hoje, como parece estar ressurgindo com uma força muito grande.
Em função disso, o ideal de vida cristã muitas vezes é apresentado como uma verdadeira ex-carnação, um desprezo pelo mundo e por tudo aquilo que se julga provisório em vistas do que se considera eterno, ou de uma busca do céu completamente desconectado da terra e de seus inerentes processos históricos e orgânicos. Muitas vezes esse ideal se camufla no excessivo cuidado da alma e seus derivativos pietistas, vindo a assumir características sofisticadas de uma fuga metafísica para não se confrontar com o aspecto rude do físico, que se dá por entre circunstâncias nuas e cruas.
Com um pouco de exagero, mas, sem dúvida, de forma sagaz, Nietzsche dizia que “O cristianismo deu veneno para o Eros; ele não morreu, mas está mortalmente envenenado. Seguramente: muito envenenado”. Não estaríamos hoje presenciando uma reação pendular da nossa cultura atual face à civilização ocidental-cristã que durante séculos maltratou o corpo, descuidando-se dele, com pesadas imposições e fortes censuras? Esse excessivo e, ao mesmo tempo, superficial cuidado para com o corpo que se reflete em horas e horas de academia ou, ainda, na ingestão de poções mágicas que tornem os corpos esculturais e “sarados” não seria a contraposição pendular a uma civilização que, tutelada por uma determinada religiosidade cristã que se olvidou de suas mais genuínas fontes, acabou se descuidando do corpo chegando ao paroxismo de desprezá-lo?
* Sinivaldo S. Tavares, OFM é Doutor em Teologia Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Foi professor no Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis. Desde 2012, professor de Teologia na FAJE e no ISTA, Belo Horizonte.
Fonte: www.domtotal.com