A coragem e o amor da jovem Luzia suplantavam os requintes de crueldade que caracterizaram o final trágico de sua vida.
13 de Dezembro de 2016
Celebramos hoje a memória de Santa Luzia, jovem cristã que viveu em Siracusa, na ilha da Sicília, no final do III século da era cristã Lembranças reportam-me à infância. Minha avó materna nutria uma devoção muito grande por Santa Luzia. Havia em sua casa um velho quadro com a estampa da santa ornado com flores e iluminado por uma vela que ardia dia e noite.
E todos os anos, ela nos reunia, filhos e netos, para rezar o terço, de joelhos, diante desse quadro que sempre me impressionava pela tamanha expressividade daquele par de olhos dispostos sobre um prato, que a santa segurava com uma das mãos, tendo a outra ocupada com uma palma verde, simbolizando seu martírio. E era assim que se iniciava, todos os anos, nossa preparação para a celebração do Natal. Após o terço, Dona Otávia – era assim que todos os vizinhos e amigos a chamavam – preparava-nos uma saborosa pipoca, que ela mesma estourava em uma panela grande, reservada unicamente para esta ocasião, e que devorávamos em meio a grande algazarra. Era um momento de grande alegria.
Mas, antes de rezarmos o terço, ela nos contava a história da santa. A jovem Luzia havia sido perseguida, torturada e assassinada por ter professado com firmeza e coragem a fé cristã. E lembro-me bem de um fato que ela contava. Ao casamento com um rapaz rico e de ascendência nobre, Luzia teria preferido dar seus pertences aos pobres e dedicar-se ao serviço deles, contrariando sua própria mãe, que queria muito que a filha se casasse com o tal pretendente. Luzia teria sido denunciada às autoridades da cidade como cristã. E o denunciante fora o próprio pretendente, movido por uma espécie de vingança pelo amor não correspondido. Foi assim que, posta diante da escolha, abjurar sua fé em Jesus, negando os valores do evangelho, ou prestar culto às divindades do Império, Luzia exclamou em alto e bom som: “Adoro a um só Deus verdadeiro, e a Ele prometi amor e fidelidade”. Palavras essas que Dona Otávia nos fazia repetir como um refrão. E assim, de algum modo, sentíamos associados à coragem e ao intrépido amor da jovem Luzia.
Diante de tamanha fé e generosidade, seus algozes lhe deceparam a cabeça, não sem antes, lhe arrancarem violentamente os olhos de dentro das cavidades faciais. Apesar de tamanha tragicidade e violência, sentimentos que anuviavam nosso coração e nossas mentes, conseguíamos rezar o terço em silêncio e, diria, com grande devoção, pois nossos olhos se fixavam no semblante de nossa avó que, mulher sofrida e altaneira, puxava o terço. Não sei como explicar, mas confesso que a coragem e o amor da jovem Luzia suplantavam os requintes de crueldade que caracterizaram o final trágico de sua vida.
Desculpem-me pela insistência, mas, de fato, o que mais nos impactava, ainda que fosse criança, era o amor e a coragem de Luzia. Com razão, a entrega livre e decidida da própria vida foi, desde sempre, interpretada como expressão maior do testemunho de fé cristã. Por isso são chamados de mártires e recebem na iconografia cristã a palma, uma espécie de insígnia que simboliza a vitória alcançada pelos mártires, no enfrentamento destemido e generoso dos algozes e seus cruéis instrumentos de morte. Ao acolherem de fronte erguida a condenação à morte, vencendo o medo face a quem lhes arrancava a vida de forma violenta e brutal, revelaram-se mais fortes do que a própria morte. Confessaram a fé cristã, testemunhando amor e coragem para além de toda e qualquer expectativa. Por isso são reconhecidos como os confessores da fé, por excelência. São aqueles e aquelas que confessaram a própria fé, sigilando-a com o derramamento do próprio sangue. E são tantos e tantas que, ao longo da história do cristianismo nos legaram como herança preciosa essa confissão de fé. Eles são aqueles e aquelas que, na visão do livro do Apocalipse, “vieram da grande tribulação. Lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro” (Ap 7, 14).
O Cânon Romano recorda-nos algumas dessas destemidas e generosas mulheres dos primeiros séculos de nossa era: Perpétua e Felicidade, Águeda e Luzia, Cecília, Inês e Anastácia. Séculos mais tarde, São Tomás de Aquino ao se referir aos mártires dizia que o sangue deles se tornou semente de novos cristãos e cristãs. De fato, o chão da fé cristã, nas várias latitudes e no decorrer dos séculos, nunca deixou de ser regado com sangue de homens e mulheres destemidos e generosos, que com sua morte nos ensinam que há valores ainda mais fortes do que a própria vida. Recentemente, o papa Francisco lembrou-nos que “nossa Igreja é uma igreja de mártires” e acrescentou: “Há mais mártires hoje do que nos primeiros séculos da vida da Igreja”. De fato, se pensamos à quantidade de cristãos, mulheres e homens, que hoje são perseguidos, torturados e até assassinados por causa da fidelidade à fé cristã e seus valores, concordaremos com as afirmações recentes do papa Francisco.
A Igreja da América Latina possui um rico martirológio, que se intensificou sobremaneira no decorrer do período que vai dos anos 60 aos 90 do século passado. E ainda hoje temos notícias de cristãos e cristãs que continuam sendo mortos em nome sobretudo de uma vida digna e plena para todos, que é um dos valores mais preciosos do evangelho. Além desses inúmeros “mártires jesuânicos”, como os chama Jon Sobrino, e assim o faz por eles terem sofrido perseguição, tortura e morte semelhantes às de Jesus, temos em nosso continente os assim chamados “povos crucificados” (Ig. Ellacuría e Jon Sobrino). Ao se referir a essas imensas maiorias de nossos povos latinoamericanos e caribenhos, assim se exprime o próprio Jon Sobrino: “A paixão do mundo é o que dá realismo à de Cristo; e a cruz de Cristo é o que confere realidade teologal à do mundo. Cristo e seu corpo histórico são inseparáveis [...] o povo crucificado é hoje aquele que presentifica a paixão de Cristo, que completa em sua carne o que falta à paixão de Cristo. E a paixão de Cristo, a morte do Filho de Deus, é o que radicaliza a maldade pavorosa que há na crucificação dos povos”.
E a força que, desde sempre, tem sustentado nossos mártires é a experiência verdadeiramente mística de que o próprio martírio é inserção no mistério pascal de Cristo. A partir dessa experiência, o martírio passa a ser compreendido não apenas como expressão da perversidade humana e da iniqüidade do mundo, mas como máxima floração da solidariedade, da fidelidade e da generosidade humanas. Neste sentido, por mais que resulte paradoxal, o martírio é compreendido como uma fecunda semeadura que continua produzindo abundantes e preciosos frutos. Na verdade, a luta pela promoção e defesa da vida a partir de suas necessidades elementares é movida por esta atitude profundamente cristã da misericórdia. E essa misericórdia, levada até suas últimas conseqüências, é o que torna possível o martírio: a entrega da própria vida como expressão de fidelidade inabalável ao projeto de Jesus e de solidariedade efetiva e, por isso, para além de toda e qualquer expectativa. O martírio é, neste sentido, a mais plena expressão do amor maior, porque, em última instância, a máxima concreção de uma misericórdia conseqüente.
*Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM. Frade franciscano. Doutor em Teologia Sistemática. Atualmente é professor desta mesma disciplina na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) e no Instituto São Tomás de Aquino (ISTA), ambos situados em Belo Horizonte, MG
Fonte: http://www.domtotal.com